Imigrantes e refugiados também contam: acirramento da invisibilidade em tempos de pandemia

  • Alexandre Branco Pereira, doutorando em antropologia pela UFSCar, coordenador da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados e assessor da coordenação do CDHIC
  • Beatriz Soares Benedito, mestra em Políticas Públicas pela UFABC e integrante do Núcleo de Estudos da Burocracia
  • Camila Barrero Breitenvieser,mestre em Administração Pública e Governo pela FGV, coordenadora da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo
  • Giordano Magri, pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC)
  • João Chaves,defensor público federal
  • Natália Suzuki, cientista política e coordenadora do programa Escravo, nem pensar da ONG Repórter Brasil

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

O capítulo quinto da Constituição Federal de 1988 coloca brasileiros e estrangeiros lado a lado na garantia de direitos fundamentais no país. A nova Lei de Migração (Lei nº 13.445), em vigor desde 2017 e aprovada pelo Congresso Nacional em esforço suprapartidário e com grande apoio da sociedade civil, também reforça a ideia de igualdade jurídica entre nacionais e não nacionais. Porém, no momento em que a COVID-19 atinge de maneira muito desigual a população que vive no país, o que se percebe é o agravamento das questões sociais que a população de migrantes internacionais e refugiados estão submetidas.

Por alcançar no máximo 1% do total de habitantes do país, a população de migrantes internacionais e refugiados convive com os temas da invisibilidade e do preconceito estruturais. Essas populações existem, são uma categoria social evidente e compreendida, mas quase não são percebidos como beneficiários de políticas públicas.

Nesse sentido, as pessoas migrantes, e dentre elas especialmente as solicitantes de refúgio ou refugiadas, não atraem a atenção de formuladores e implementadores de políticas públicas, com raras exceções. A construção de políticas públicas voltadas à população migrante e refugiada é sempre desafiadora devido ao dinamismo dos fluxos e à heterogeneidade dessas populações. As trajetórias de vida, as culturas diversas e os contextos em que estão inseridos implicam no acesso a direitos de forma distinta e, muitas vezes, desigual. Por exemplo, as demandas de um migrante boliviano em São Paulo dedicado ao trabalho em uma oficina de costura podem ser muito diferentes das questões colocadas para um indígena warao, vindo da Venezuela e residente em Manaus.

Nesse sentido, nas últimas duas décadas a maioria dos serviços de apoio a migrantes privilegiou a qualificação de seu atendimento presencial e humanizado como forma de lidar com dificuldades linguísticas, de acesso aos meios de comunicação tradicionais ou de compreensão da burocracia brasileira. No entanto, no contexto da pandemia de COVID-19, as mudanças na dinâmica social e da circulação de informações, bem como no acesso às estruturas governamentais impactaram a vida de pessoas migrantes, especialmente nos grandes centros urbanos, e o atendimento desta população em serviços públicos.

A prática diária da interação entre burocratas que atuam na linha de frente das políticas públicas e migrantes internacionais e refugiados, enfrenta a falta conhecimento sobre documentos que essas pessoas possuem ou a incompreensão sobre o fato de que a elas é garantido o acesso a serviços básicos: é o caso, por exemplo, de instituições bancárias que nem sempre conhecem os documentos portados por migrantes e sua validade, exigindo invariavelmente além do necessário para sua identificação e atendimento de suas pretensões. A pessoa migrante, por mais tempo que esteja no país, sempre está sujeita ao questionamento de sua situação jurídica, o que não ocorre com brasileiros.

A indocumentação se torna, portanto, um entrave formal para acesso aos serviços públicos pela população migrante e refugiada. Contudo, há barreiras informais que impedem o acesso de migrantes e refugiados aos serviços públicos: a questão linguística; o medo de denúncia da situação documental irregular; e, o racismo, podem ser citados como exemplos.

No que diz respeito à língua, se verifica que há anos voluntários da sociedade civil organizada atuam como intérpretes em postos da Polícia Federal para permitir que o acesso a este serviço seja realizado. Hoje os serviços de atendimento da Polícia Federal a migrantes estão parcialmente suspensos, mas em algum momento a demanda terá de ser absorvida, sem uma burocracia que incorpore esta demanda da língua. Já no que se refere à educação, o ensino público avançou nos últimos anos em ações normativas para recebimento dessa população, porém ainda perece de estabelecer critérios pedagógicos que incluam estudantes migrantes e refugiados, ultrapassem a barreira da língua e valorizem a diversidade cultural. Na pandemia esse entrave se torna ainda mais presente, sobretudo no que diz respeito ao acesso à internet desses jovens e inclusão em atividades escolares.

Como tentativa de contornar a questão linguística, o Governo Federal disponibilizou cartilhas sobre a prevenção da doença em inglês, espanhol e francês. Porém, a coleta e disponibilização de dados de saúde sobre a incidência do coronavírus em migrantes e refugiados é precária.

Outro fator que se intensifica neste momento são as manifestações de racismo e xenofobia contra migrantes internacionais e refugiados, que tiveram aumento expressivo em todo o mundo durante a pandemia – levando, inclusive, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a dizer que o que estava ocorrendo era um “tsunami de ódio e xenofobia”. Além do preconceito contra chineses, em particular, e asiáticos, em geral – frequentemente associados à propagação da doença -, também houve um crescimento exponencial de casos de racismo contra migrantes e refugiados negros.

O caso de João Manuel, migrante angolano de 47 anos assassinado em maio no bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo, tornou-se emblemático do acirramento das expressões de racismo e xenofobia no país durante a pandemia. João Manuel foi morto com duas facadas após uma discussão sobre se migrantes teriam ou não direito ao recebimento do auxílio emergencial, e migrantes internacionais do bairro relatam que os ataques racistas e xenófobos já vinham ocorrendo desde antes da agressão – notícias dão conta de ataques verbais e espancamentos. O racismo e a xenofobia também têm consequências práticas na garantia de acesso à saúde para essa população e outros serviços básicos, aprofundando as vulnerabilidades a que estão submetidos e impactando de maneira mais forte migrantes mulheres, negros, indígenas e aqueles oriundos de países da margem do capitalismo global.

Diversas iniciativas têm sido levadas a cabo por organizações da sociedade civil de apoio que já trabalham com o tema há anos e viram suas ações cotidianas atravessadas pela pandemia do novo coronavírus. Em linhas gerais, estas organizações têm oferecido serviços relacionados às demandas jurídicas, regularização migratória, assistência social, assistência psicológica, cursos e encontros temáticos e de formação política, além de desenvolverem ações específicas – relacionadas às questões de gênero e acesso a direitos sociais, por exemplo – e territorializadas – que ampliam o alcance às populações residentes em bairros não centrais (onde se concentram a maior parte das organizações). Como no caso das instituições públicas, o atendimento realizado pelas organizações era realizado principalmente de forma presencial e teve que se adequar e passar a ser estruturado de forma remota lidando com os desafios e limitações impostas pelo atendimento não presencial.

Destaca-se também a ação de lideranças e associações de migrantes internacionais e refugiados. As ações abrangem a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e proteção individual, apoio para realização de cadastros de solicitação do auxílio emergencial e organização de campanhas de solidariedade. Além destas, há iniciativas que discutem a urgência da regularização migratória em tempos de pandemia, como a Campanha #RegularizaçãoJá apoiada por diversos coletivos e organizações ligadas ao tema. A campanha dialoga com a defesa pelos movimentos de migrantes, já de longa data, pela regularização migratória e que se torna mais urgente uma vez que a indocumentação é entendida como um agravante, como discutido anteriormente.

O acesso ao trabalho nesse contexto também ganha contornos preocupantes. Historicamente, migrantes vulneráveis são um dos grupos mais suscetíveis à exploração no mundo do trabalho. Muitas vezes, em situação documental irregular, não conseguem a formalização das relações trabalhistas por não disporem de documentação necessária ou pelas ameaças e coação do próprio empregador de denúncia a autoridades migratórias. O temor da deportação e a escassez econômica se impõem para que aceitem trabalhos precarizados, mal remunerados e rejeitados por quem pode escolher a sua ocupação. Em crises como esta, migrantes internacionais são os primeiros a perderem os empregos. Na retomada das atividades econômicas, têm dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, mesmo no informal. Diante disso, qual tipo de trabalho será ofertado aos migrantes após a pandemia? Eles conseguirão acessar padrões mínimos de dignidade em seus trabalhos? E o Estado brasileiro, será que estará preparado para lidar com essa precarização ainda maior que se antevê?

Todas as questões levantadas aqui demonstram a intensificação de problemas estruturais que já estão postos à inclusão de migrantes internacionais e refugiados nas políticas públicas.

Nesse sentido, o governo brasileiro deverá enfrentar em poucos meses o desafio de promover a regularização de migrantes internacionais e refugiados, atualmente indocumentados ou com documentos provisórios vencidos. Uma solução esperada é a simplificação dos trâmites, com menor exigência documental, atualização das normativas específicas e compreensão dos efeitos danosos da pandemia à circulação de pessoas e acesso a documentos dos países de origem como antes.

Além disso, outros desafios precisam ser enfrentados que, embora sejam desafios estruturais, demandam medidas urgentes que promovam o acesso a direitos de migrantes internacionais e refugiados neste momento de pandemia:

  • (i) intensificação do trabalho em rede, articulando órgãos públicos e organizações da sociedade civil, a fim de efetivamente alcançar populações migrantes invisibilizadas;
  • (ii) simplificação da documentação necessária para regularização migratória;
  • (iii) reforço da formação dos trabalhadores de serviços públicos essenciais quanto à documentação exigida à população migrante e refugiada;
  • (iv) ampliação das estruturas de fiscalização de casos de xenofobia e racismo e de situações de trabalho análogas à escravidão; e
  • (vi) valorização das ações das organizações da sociedade civil e de organizações de migrantes.

O momento de crise como a que estamos vivendo coloca às democracias do mundo o desafio premente de enfrentar as desigualdades locais e garantir a sobrevivência e condições dignas de vida às populações mais vulneráveis. Para isso, problemas estruturais das políticas e o efetivo alcance das ações governamentais precisam ser enfrentados e exigem da Administração Pública e da Academia um diagnóstico apurado e à disposição de eliminar as barreiras formais e informais de acesso a direitos a toda a população, incluindo-se a população migrante internacional e refugiada.

* Originalmente publicado no Blog Gestão, Política e Sociedade do Estadão

Confira aqui o debate online com profissionais que estudam/trabalham diretamente com imigrantes e refugiados:

E quem não tem casa?

  • Beatriz Soares Benedito – Mestre em Políticas Públicas pela UFABC
  • Erica Aparhyan Stella – Doutoranda em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
  • Giordano Magri – Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) e do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC)
  • Julia Lima – Pós-graduanda em gestão pública pelo Insper, engenheira civil pela Escola Politécnica da USP.
  • Juliana Reimberg – Mestranda em Ciência Política na USP, graduada em Administração Pública pela FGV-EAESP e graduanda em Direito na FGV.
  • Kelseny Medeiros – Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e mestranda em planejamento e gestão do território (UFABC)
  • Laura Cavalcanti Salatino – Coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP) e graduada em direito pela Universidade de São Paulo

No dia 07 de julho de 2020, o Movimento Nacional (MNPR) e o Movimento Estadual da População em Situação de Rua (MEPSR), com apoio de diversas organizações da sociedade civil, organizaram o “Ato em defesa da População em Situação de Rua em tempos de COVID-19”: um acampamento que permaneceu por mais de 24 horas em frente à Prefeitura de São Paulo, demandando que o poder público adotasse medidas efetivas para proteção desta população. Na oportunidade, pediram a manutenção das barracas em espaços organizados, contratação de quartos de hotéis, garantia de segurança alimentar e manutenção de equipamentos públicos para higienização.

O Ato, além de representar um momento importante na trajetória dos dois movimentos sociais, que atuaram juntos de forma inédita, marcou um dia histórico para os grupos que lutam para minimizar os efeitos da desigualdade social, evidenciados pela pandemia. O protesto, como processo, foi o ápice de um tensionamento que começou em março, no início da pandemia, com a Carta Aberta apresentada no Comitê PopRua pelos representantes eleitos da sociedade civil, em que se recomendou a adoção de 30 metas para a mitigação dos efeitos da pandemia sobre a população em situação de rua. Ultrapassada a marca de 120 dias do início da quarentena decretada pela Prefeitura, as limitações nas iniciativas realizadas pela municipalidade, as metas que não foram integralmente efetivadas e a dificuldade de diálogo entre governo e sociedade civil levaram os movimentos a se unirem nesta ação que ganhou repercussão nos principais veículos de comunicação do país.

Para entender os impactos da pandemia para a população em situação de rua, é preciso pensar que as demandas históricas deste grupo se tornam ainda mais prementes. Isso acontece, primeiramente, porque as políticas de combate ao vírus, baseadas em isolamento social e medidas de higiene, são impraticáveis para aqueles que se encontram em situação de calçada ou mesmo para os acolhidos em equipamentos públicos com grande concentração de pessoas. O contexto torna ainda mais difícil o acesso da população em situação de rua à comida, doações e renda, já que há pouca circulação de pessoas nas ruas, e restaurantes, bares e lanchonetes se encontram fechados.

Esse é um cenário extremamente preocupante em metrópoles como São Paulo, cujo número de pessoas em situação de rua era de 24.344 em 2019, segundo o Censo PopRua daquele ano. Na época, o dado já havia sido considerado subdimensionado pelos movimentos sociais e organizações que trabalham com o tema. Atualmente, porém, estima-se que esse número é maior, em virtude da crise sanitária e econômica, que aumentam a dificuldade com pagamento de aluguéis e, por conseguinte, os despejos. Um levantamento recente do IPEA aponta, a partir de dados diários do Cadastro Único, que já é possível observar crescimento da população em situação de rua como efeito da pandemia.

Resgatando as ações voltadas à população em situação de rua na cidade de São Paulo desde o início da pandemia, como resposta à mobilização dos movimentos sociais e da sociedade civil, políticas emergenciais passaram a ser discutidas e implementadas na cidade.

projeto “Rede Cozinha Cidadã” foi a primeira ação da Prefeitura direcionada para este público. Diariamente são oferecidas 7.500 marmitas nas regiões com maior concentração de pessoas em situação de rua (Sé, Santo Amaro, Santana, Lapa, Mooca, Pinheiros e Vila Mariana). A alimentação é produzida por 69 restaurantes, com custo de R$ 10 a unidade da refeição, subsidiada pela Prefeitura. Essa política completa três meses no próximo dia 23, com mais de 600 mil marmitas entregues no total. Outra medida adotada nesse sentido, mas agora pelo Governo Estadual e como resposta à pressão exercida pela Frente Parlamentar Estadual, foi a garantia de gratuidade para esta população nos restaurantes populares Bom Prato por um período de três meses. Em ambos os casos, há uma preocupação com a continuidade das medidas adotadas, já que o prazo inicial de três meses está perto de se encerrar, enquanto a pandemia segue em curso.

Também foi implementada a Ação Vidas no Centro, que oferece banheiros, chuveiros e lavanderias em sete locais do centro histórico da cidade. Instalados em contêineres e tendas provisórias, a iniciativa também conta com a doação de kits para higiene dental com escovas e pastas de dente, toalhas descartáveis e sabonetes. Para complementar as medidas de higiene promovidas, houve a instalação de dez pias de cimento nas regiões centrais da cidade. Essas iniciativas correspondem a uma demanda antiga desta população, relacionada à garantia de equipamentos de higiene, porém seguem em caráter provisório com estimativa de término junto com as ações municipais de combate à COVID-19.

A despeito dessas duas ações que buscam promover acesso à alimentação e condições mínimas de higiene, existem ainda desafios e limitações enfrentados pela Prefeitura, especialmente na garantia de apoio para acesso à renda, por meio do auxílio emergencial, e de medidas de acolhimento compatíveis com as determinações de isolamento.

Em relação à renda, a população em situação de rua enfrenta grandes desafios no acesso ao auxílio emergencial do Governo Federal: as dificuldades com documentação pessoal, acesso à internet e falta de informações confiáveis criam barreiras para que essas pessoas consigam obter o benefício. Uma mulher em situação de rua que foi a uma agência da Caixa Econômica Federal relatou que não apenas “eles também não têm muita informação”, como orientaram que ela entrasse no site; Juliana Hashimoto, advogada da Pastoral do Povo da Rua, relata que essa população tem sido orientada pelos funcionários da Caixa Econômica Federal a “baixar o aplicativo e acessar o site”. Mais ainda, muitos daqueles que conseguiram receber a primeira parcela do auxílio emergencial descobriram que o benefício havia sido cancelado antes do recebimento da segunda parcela.

Já no que diz respeito ao acolhimento desta população, o Censo PopRua 2019 indicou que em São Paulo 11.693 pessoas estão em Centros de Acolhida e 12.651 estão nas ruas. Portanto, há um déficit de vagas na cidade, principalmente nas regiões centrais, com maior demanda. Apesar de a Prefeitura informar que há cerca 22 mil vagas na rede de acolhimento socioassistencial, por meio de pedidos de acesso à informação feitos por pesquisadores, foi possível concluir que este dado não é preciso, uma vez que também contabiliza vagas diurnas em centros de convivência. De fato, há somente 13 mil vagas para pernoite, o que atende apenas metade da demanda. Ademais, é preciso destacar que grande parte das vagas em Centros de Acolhida encontram-se em locais afastados e insalubres e com uma alta concentração de pessoas, sendo estes espaços inadequados ao distanciamento social.

Na tentativa de mitigar a falta de vagas, a Prefeitura abriu 1.072 vagas em 12 Centros de Acolhida Emergenciais, sendo 136 dessas vagas destinadas a casos confirmados de COVID-19. Entretanto, a demanda por acolhimento é muito alta e segue em crescimento. Movimentos sociais, organizações e parlamentares solicitam desde março parcerias entre a Prefeitura e a rede hoteleira para o acolhimento de pessoas em situação de rua. Em 27 de abril foi aprovado na Câmara o Projeto de Lei que deu origem à Lei n° 17.340, que autorizou o poder público a acolher profissionais da saúde, população em situação de rua e mulheres vítimas de violência em hotéis e pousadas. Após editais desertos, ausência de diálogo e pressão da sociedade civil, no último dia 08, durante o ato dos movimentos sociais em defesa da população em situação de rua, a Prefeitura anunciou o início dessa ação, mas somente para 100 idosos que estavam em Centros de Acolhida para adultos.

Outra alternativa ao acolhimento proposta pela sociedade civil foi a instalação de campings, para organização das barracas já existentes na cidade. Essa proposta, além de sofrer resistência do poder executivo, é combatida em ações de zeladoria urbana em que as barracas são retiradas pelas Subprefeituras. Além de alternativas de proteção à COVID-19, hotéis e campings ofereceriam também isolamento durante as baixas temperaturas do inverno paulistano.

É importante mencionar que nas quatro áreas primordiais para atenção da população em situação de rua no combate ao coronavírus – alimentação, medidas de higiene, acesso à renda e acolhimento – os trabalhadores que atuam na linha de frente da implementação dessas políticas ganham especial relevância. Em um momento de escassez de políticas públicas e da alta demanda por atendimento, são trabalhadores da assistência social que estão nos serviços para a população em situação de rua que precisam decidir quem serão os beneficiados e quais ficarão excluídos da rede socioassistencial. Estes profissionais, ao tomarem tais decisões, mobilizam aspectos subjetivos a partir de suas experiências prévias, aumentando incertezas. Muitas vezes precisam tomar tais decisões diante de casos complexos que envolvem múltiplas vulnerabilidades, o que pode reproduzir desigualdades e aumentar a vulnerabilidade dessa população.

Nesse sentido, se por um lado, não é possível pensar que o déficit habitacional será resolvido durante a pandemia, por outro, o contexto evidencia que a moradia é a linha de frente no combate a uma doença que tem na circulação a base para o contágio e no isolamento domiciliar a única medida de prevenção eficiente. Assim como o atual cenário reforça a necessária manutenção dos equipamentos de higiene para esta população, que há anos luta por este acesso, e que foi viabilizado em caráter emergencial e temporário. Também é necessária a discussão de uma renda básica para esta população, que ultrapasse os limites de um auxílio que aparece como emergencial e com tantos obstáculos de acesso. A garantia da alimentação para a população em situação de rua também precisa ser promovida pelos governos em momentos para além do combate à doença.

Por fim, no ato ocorrido na semana passada, essas questões apareceram entre as reivindicações. A emergência da situação da pandemia exige ações inovadoras, arrojadas e, principalmente, rápidas. A longo prazo, é essencial que haja mais investimentos para a população em situação de rua, sobretudo na área habitacional. O direito à moradia, reivindicação histórica da população em situação de rua, permite o acesso aos demais direitos, como saúde, educação, emprego e vínculos sociais. Desta forma, as reivindicações da população em situação de rua são atravessadas por essa verdade: o coronavírus tornou a moradia uma necessidade imediata de proteção à saúde de toda a sociedade. E, de forma inédita, não é possível pensar a proteção do sistema de saúde como um todo sem pensar a proteção dessa população. Embora as propostas aqui elencadas incorporem essa realidade ao sugerir o acolhimento em hotéis, por exemplo, as respostas da municipalidade continuam atreladas a um modelo de acolhimento criticado no pré-pandemia e inviável após ela.

* Originalmente publicado no Blog Gestão, Política e Sociedade do Estadão

Confira aqui o debate online com profissionais que estudam/trabalham diretamente com população em situação de rua:

Quem cuida dos cuidadores? A assistência social em tempos de pandemia

  • Giordano Magri, mestre em administração pública e governo pela FGV e pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)  
  • Fernanda Lima-Silva, pós doutoranda em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
  • Gabriela Lotta, professora de administração pública e governo da FGV e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
  • Ceninha Francisco, assistente social e trabalhadora da rede direta da cidade de São Paulo
  • Taciana Barcellos Rosa, mestra e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)
  • Mariana Costa Silveira, doutoranda em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

A pandemia da COVID-19 tem submetido o mundo a uma crise de saúde pública e econômica sem precedentes na história recente, e que produz efeitos mais graves sobre as pessoas mais pobres e já expostas à maior vulnerabilidade social. No Brasil, essa crise ganha contornos mais drásticos, não só pela postura do Governo Federal, mas também porque a quarentena atinge em cheio as famílias dos mais de 38 milhões de trabalhadores informais do país, ou seja, 40% da população ocupada. Do ponto de vista político, embora o foco do enfrentamento à COVID-19 esteja nas áreas de saúde e economia, a política de assistência social assume um papel estratégico para minimizar os danos da crise aos mais pobres e viabilizar medidas econômicas e sociais criadas para enfrentar a pandemia.

A política de assistência social no Brasil vem se fortalecendo a partir da Constituição de 1988, quando passou a compor o espectro da seguridade social, junto com saúde e previdência, reconhecidas como direitos de todo cidadão e deveres do Estado. Desde então, houve um processo gradual de estruturação da área socioassistencial no país, que inclui a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), consolidando uma institucionalidade com base nos princípios da coordenação federal e descentralização no território brasileiro. Esse processo está atrelado ao desenvolvimento de capacidade estatal municipal nessa área, que varia em função de cada contexto local e do nível dos recursos disponíveis. Mesmo em municípios com maiores capacidades institucionais, como São Paulo, os recursos existentes – em termos financeiros, de equipe e também de articulação com outras políticas sociais – são escassos frente à elevada demanda pelos serviços e à complexidade requerida para sua efetividade.

Olhando para a implementação, os diversos e variados serviços tipificados pelo SUAS são geridos por uma rede composta por órgãos da administração direta municipal e Organizações da Sociedade Civil (OSCs). Nas grandes cidades, como São Paulo, uma parte significativa desses serviços é executada de maneira indireta por OSCs e, portanto, por trabalhadoras – a maioria mulheres – com baixos salários, vínculos de emprego fragilizados e quase sempre em condições de trabalho também precárias. Enquanto o colapso estatal da rede de saúde e até do serviço funerário vem ocupando o noticiário em todo o país, pouco se fala das condições às quais estão submetidas as milhares de profissionais da assistência social que atuam na ponta, em contato direto com a parcela mais vulnerável da população.

Em primeiro lugar, essas trabalhadoras estão enfrentando um aumento da demanda de trabalho. Cidadãos mais vulneráveis à crise, como a população em situação de rua e as pessoas em condições mais precárias de habitação, trabalho e renda, requerem cuidados adicionais. Além disso, essas profissionais também precisam dar suporte ao cadastramento na renda básica emergencial, por meio do Cadastro Único, cujo grande desafio é alcançar um contingente de mais de 42 milhões de pessoas que não estão presentes em nenhum cadastro público e que, muitas vezes, sequer têm acesso à internet. Em segundo lugar, além do aumento da demanda, estas profissionais estão expostas, pela própria natureza do trabalho, a dificuldades na operacionalização de suas tarefas dado o contexto de isolamento social. Um exemplo é a dificuldade em garantir o funcionamento dos Núcleos de Convivência para Adultos em Situação de Rua, que estão cada dia mais cheios. Por fim, por causa dos contatos cotidianos com a população, as trabalhadoras estão fisicamente expostas à doença e precisam enfrentar seus medos, ansiedades e preocupações para garantir o cuidado e o acesso a direitos à população mais vulnerável. De fato, como mostra Roberto Pires em pesquisa recente do IPEA, a pandemia cria uma exacerbação das fragilidades já vivenciadas pelas trabalhadoras da rede de assistência.

Respostas governamentais tímidas, lentas e pouco coordenadas estão presentes de forma marcante na história da assistência social. Isso, infelizmente, não foi diferente neste momento de pandemia. Com uma rede estruturada majoritariamente por OSCs, a cidade de São Paulo é um caso didático. Até agora, as medidas apresentadas pela Prefeitura se restringem (i) à distribuição irrisória de cestas básicas, por meio do programa municipal Cidade Solidária, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e não pela Secretaria de Assistência, que só agora começa a efetivar a entrega de alimentos a algumas comunidades mais pobres, mas sem integrar o programa à rede de Proteção Social já existente na cidade; e (ii) à oferta de vagas emergenciais de acolhimento pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), esforço que garante números para que a Prefeitura apresente, mas que não viabilizam uma resposta adequada às necessidades das OSC´s parceiras e, principalmente, das profissionais da ponta.

Tampouco temos visto cuidados adicionais em alinhar informações e novos procedimentos de trabalho para os tempos de pandemia. Segundo o gabinete de SMADS, a nota técnica conjunta com a Secretaria de Saúde com orientações relativas ao acolhimento durante o isolamento social ainda está sendo elaborada. Durante o primeiro mês da quarentena, grande parte das medidas emergenciais que poderiam ter sido adotadas em serviços da rede, como a compra de cestas básicas, não foi viabilizada por falta de autorização jurídica da Secretaria no remanejamento interno de gastos nos convênios com as OSC’s. Além da falta de diretrizes para o funcionamento da rede, as trabalhadoras da ponta tiveram que se informar por conta própria sobre como se proteger durante a crise e como superar as dificuldades de implementação da política em condições tão adversas.

Ainda mais grave é o cenário relativo a equipamentos de proteção individual (EPI’s) necessários para a proteção destas trabalhadoras. Segundo relato de profissionais da rede, os EPI´s só foram disponibilizados mais de um mês depois do início da quarentena, após a resolução de um conflito entre as OSCs e a Prefeitura sobre quem teria a responsabilidade de oferecer esses insumos. Embora agora alguns EPI´s comecem a chegar, parte dos trabalhadores dos serviços segue totalmente desprotegida. São terceirizados responsáveis pela vigilância predial, limpeza e realização do Cadastro Único que continuam invisibilizados e expostos. 

Como consequência, relatos de mortes e afastamentos de trabalhadores da rede socioassistencial por conta do COVID-19 começam a aparecer, como denunciado pelo Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep). Segundo a própria SMADS, são 350 trabalhadores da rede direta afastados, preventivamente ou por suspeita de contaminação. Até este momento, a Secretaria só tem acompanhado a rede direta, o que faz com que ainda não exista esse mesmo mapeamento em relação às trabalhadoras da rede conveniada.

Este cenário preocupante se confirma em pesquisa que vem sendo realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV-EAESP), com profissionais da área da assistência social de várias cidades do país para analisar os impactos da Covid-19 na atuação dos trabalhadores da ponta. Resultados preliminares, do total de 407 respondentes, apontam que 44% deles não receberam orientação da chefia sobre como atuar em momentos de crise; e 58% não sentem suporte dos superiores para enfrentar a pandemia. Além disso, 63% dos participantes não receberam os equipamentos necessários para se proteger do vírus, e 86% não tiveram treinamento para lidar com a COVID-19. Quase a metade desses profissionais (45%) conhece companheiros de trabalho que foram contaminados ou apresentam sintomas. A mesma pesquisa também indica a escala do medo e da falta de apoio, com 91% dos respondentes (370) afirmando terem medo do Coronavírus.

Para fazer frente a estes imensos desafios na implementação dos serviços socioassistenciais em tempos de pandemia, é preciso reduzir a distância entre os responsáveis pelas decisões políticas e os trabalhadores que estão na linha de frente. Além de defenderem a contenção da disseminação do vírus entre a população como um todo, esses profissionais indicam que a crise só poderá ser superada com (i) a criação e o fortalecimento de canais de comunicação da rede socioassistencial com o público beneficiário; (ii) a imediata disponibilização de EPI´s e de diretrizes claras de atuação para todos os trabalhadores da rede, inclusive os terceirizados; (iii) o controle das condições de saúde dos trabalhadores das redes direta e conveniada, com a realização de testes da COVID-19 nesses profissionais, quando disponíveis; e (iv) a maior integração intersetorial, como forma de responder de maneira articulada à complexidade da atuação na pandemia.

Em suma, ainda que a política de assistência social tenha avançado nos últimos 15 anos, sua implementação permanece marcada por inúmeros problemas – que se agravam com a chegada de uma pandemia, cujos impactos incidem de maneiras muito distintas na população brasileira em razão das desigualdades sociais históricas. Nesse cenário, a rede de assistência social faz parte de um conjunto essencial de ações de enfrentamento à COVID-19, mas faltam o suporte institucional e os recursos necessários à realização adequada deste trabalho. Isso expõe não apenas estas profissionais da ponta, como, acima de tudo, os cidadãos e cidadãs em situação de vulnerabilidade que dependem tanto do trabalho destas profissionais para terem condições mínimas de sobrevivência. Em tempos de pandemia, quem cuidará dos cuidadores?

* Originalmente publicado no blog Gestão, Política & Sociedade, no Estadão